Parecer

O empregado e o autônomo - a confusão deliberada

Emilia Monte de Brito (Novembro - 2006)

Das considerações iniciais

Elege-se, para iniciar o presente texto, uma metáfora muito utilizada por experiente advogado em contendas judiciais que, em perfeito alerta, dizia: colocar um tigre na jaula do elefante, não transforma o elefante em tigre e nem o tigre em elefante.

Pede-se ao leitor, portanto, que enfrente a questão acompanhado de tal norteador, na certeza de que a mera nomenclatura de um contrato não transmuta as relações a ele subjacentes, razão pela qual não isenta os partícipes dos efeitos legais e dos riscos inerentes às soluções mágicas que, de modo geral, não encontram guarida no mundo jurídico.

Não se desconhece aqui o (justo) fascínio que as mencionadas “soluções mágicas”– entre as aspas, realmente - trazem para as empresas e os empregadores já que estes estão sempre confrontados com a perversa realidade brasileira na questão “custo empregado”, não havendo quem não sonhe em “fugir” dos contratos de trabalhos típicos, buscando ajustes menos onerosos.

Ocorre que, o sonho pode se desfazer nos corredores da Justiça do Trabalho, esta abarrotada de demandas judiciais onde o autônomo “só no nome” passa a solicitar o status de verdadeiro empregado, derivando de tal conflito, muitas vezes, condenações insuportáveis, mas não imprevisíveis, esvaindo-se, então, a economia anteriormente pretendida no caixa da empresa.

Dos elementos caracterizadores do contrato de trabalho

Fixadas as premissas acima, inicia-se esta abordagem sob a ótica do Direito do Trabalho que é, ao fim e ao cabo, a grande preocupação de todos os contratantes, lembrando-se, de plano, um dos princípios basilares que regem a matéria: o contrato de trabalho é um contrato realidade.

Pretende-se com isto dizer que, independentemente do instrumento que assinem as partes e/ou da nomenclatura dada a eventual relação, cabe perquirir se estão presentes os requisitos necessários à configuração da condição de empregado.

Se estes elementos caracterizadores estiverem presentes, estaremos diante de um verdadeiro contrato de trabalho.

Em outras palavras, não surtirá efeito formalizar um contrato de prestação de serviços autônomos, se as partes envolvidas revestirem-se dos predicados legais inerentes às figuras de empregado e empregador.

Tal avaliação deve ser feita sempre no caso concreto, pois a ciência jurídica, como ramo do saber, não se satisfaz com fórmulas matemáticas, mas exige um olhar dinâmico, atento, percuciente sobre cada demanda. Mas, contudo, nos parece produtivo municiar o leitor de breves esclarecimentos técnicos que, podem, no mínimo, garantir contratações de menor risco ou desfechos menos imprevisíveis.

Elementos caracterizadores do conceito de “empregado”:

• será pessoa física;

• prestará serviços de forma contínua
a lei não fixa um período mínimo ou máximo de tempo para que alguém seja considerado ou não empregado. É uma idéia generalizada, porém imprópria, entender que contratos de prazos inferiores a 03 (três) meses não caracterizariam uma relação de emprego, e, que um prazo superior a este, necessariamente confirmaria tal condição;
a emissão de 01 (uma) ou 20 (vinte) RPAs não fazem a diferenciação definitiva entre um autônomo e um empregado;
a idéia de continuidade está associada ao prolongamento de uma relação, sob determinadas condições, e não vinculada obrigatoriamente ao tempo que perdura o contrato ou ao número de dias da semana em que há trabalho;

• subordinação
condição associada à dependência hierárquica que o empregado mantém em relação ao empregador; a obrigação do empregado é de trabalhar mediante as ordens de sua chefia direta e/ou indireta;
é o traço mais importante para configuração da condição de empregado, e de modo inverso, o que o afasta definitivamente da relação autônoma;

• direção dos trabalhos
em decorrência do próprio conceito de subordinação, o empregado não atua com arbítrio, mas sim sujeito às ordens e à direção geral do empregador;

• alienação (“ajenidad”) dos frutos do trabalho
os frutos do trabalho do empregado pertencem ao empregador – é um elemento mais moderno no estudo do Direito do Trabalho – muito associado às atividades de invenção e pesquisa;

• pagamento de remuneração
caracteriza o empregado, mas não é elemento privativo da relação de emprego, considerando que outros trabalhadores, inclusive, os autônomos, também fazem jus à remuneração em dinheiro.

Dos elementos caracterizadores do trabalho autônomo

Nesse sentido, a fim de haver harmonização entre o que está escrito no contrato e a realidade, o contratado deve dirigir autonomamente seu trabalho, pois, a relação jurídica não é subordinativa, mas sim obrigacional, o que significa dizer que:

• o autônomo não está sujeito a horários ou jornadas de trabalho pré determinadas;

• o autônomo não está sujeito ao comparecimento diário a um local de trabalho;

• o autônomo não tem vinculação específica ao cliente, razão pela qual há que se tomar cuidado com a forma que o Contratante apresenta o Contratado, havendo que se evitar, por exemplo, cartões de visita em nome da empresa;

• o autônomo encontra-se obrigado a prestar os serviços pelos quais se obrigou, arcando com as responsabilidades advindas de sua inadimplência, não podendo, contudo, o contratante imiscuir-se em questões de ordem técnica e nem ditar a forma de execução do objeto contratado;

• o autônomo, em geral, é contratado para serviços que não fazem parte do objetivo principal da organização, condição que colabora com a diferenciação entre aquele e o verdadeiro empregado. – Neste caso, se as prestações se protaírem no tempo, pode-se induzir que tais atividades, na realidade, estão dentro do escopo da atuação do contratante, o que exigirá uma avaliação, caso a caso, para verificar-se a existência dos demais elementos caracterizadores da condição de empregado.

• o contrato de prestação de serviços é regulado pelos artigos 593 e seguintes do Novo Código Civil, valendo chamar atenção para o disposto no art. 598, único momento onde a lei faz referência ao prazo para dispor que este tipo de contratação não pode ser superior a 04 (quatro) anos.

Colhendo a inteligência deste artigo com as observações anteriormente feitas, ressaltamos que se um contrato é de prestação de serviços autônomos, poderá ser de até 04 anos, mas se, de fato, for um contrato de trabalho, assim será considerado desde o primeiro momento, não interessando se e quantos RPAs tenham sido emitidos.

Da conclusão

Não se pretendeu aqui, por óbvio, esgotar as inúmeras variáveis decorrentes da questão apresentada, nem ao menos dar rigoroso tratamento técnico ao texto, como se estivéssemos diante de uma petição inicial, uma contestação ou um parecer jurídico em sentido restrito, razão pela qual, inclusive, utilizamos, ou pretendemos utilizar, linguagem clara para todos os ouvidos, inclusive os treinados fora do meio jurídico.

O presente texto é fruto de recorrentes consultas, respondidas ao longo dos últimos anos sobre o tema, na advocacia trabalhista. Sempre que nos deparamos com a questão, buscamos desfazer os mitos, afastar as mágicas e municiar o cliente de elementos que o façam refletir, sem paixões, sobre a matéria.

Por ora, enquanto aguarda-se um novo modelo para o Brasil, com uma nova feição menos paternalista para o Direito do Trabalho, com contratos mais flexíveis e empregados “mais autônomos” – isso mesmo, com maior autonomia para definir as regras de seu contrato - não há como desconhecer a legislação vigente, razão pela qual, cabe avaliar, no âmbito de cada empresa, os ônus e os bônus de “confundir deliberadamente” um verdadeiro empregado com um profissional autônomo.