Parecer

O direito sucessório do cônjuge casado pelo regime da separação contratual de bens

Monica Ballariny (Abril - 2012)

Maria e João, ambos na faixa de 50 anos de idade, com filhos de relações anteriores, e patrimônio pré-constituído, inicia relação amorosa.

Decorrido pouco mais de um ano, decidem casar, sem manter vínculos de dependência econômica, ambos exercendo função remunerada e cada qual administrando o seu próprio patrimônio.

Assim, elegem o regime da separação de bens para reger o casamento, firmando previamente um pacto antenupcial prevendo a incomunicabilidade total do patrimônio presente e futuro e respectivos frutos de cada um dos futuros cônjuges

Infelizmente, um ano depois do casamento, João vem a falecer em acidente automobilístico, sem deixar testamento.

Os dois filhos de João pedem a abertura da sucessão paterna e são surpreendidos com o ingresso de Maria no Inventário reivindicando o recebimento de 1/3 da herança.

O objeto da consulta: Maria tem direito à herança deixada por João?

Inicio a análise do caso me servindo dos ensinamentos do Prof. Miguel Reale, que foi supervisor da "Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil", sobre o tema em comento:

Nessa ordem de idéias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens. A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão "separação obrigatória" aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1.641. Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que – se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança – estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1.687, sem o qual desapareceria todo o regime de separação de bens em razão do conflito inadmissível entre esse artigo e o de n. 1.828, I [na realidade, art. 1829, I], fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática.
(O Estado de São Paulo: São Paulo, 12 de abril de 2003, p.2).

O Prof. Reale baseou-se na regra primeira da hermenêutica jurídica de interpretação de um artigo em harmonia com os demais contidos na mesma codificação, no caso em foco, o art. 1829, I, do Código Civil no contexto das demais regras relativas ao tema.

O legislador no artigo 1829, I do CC objetivava proteger o cônjuge casado pelo regime legal, ou seja, pelo regime da comunhão parcial de bens, no tocante aos bens particulares.

Parece evidente que o legislador não pretendia incluir na categoria de herdeiros necessários os cônjuges casados pelo regime da separação de bens, obrigatória ou pactuada, já que ambos implicam na "obrigatoriedade da separação de bens".

Observe-se, aliás, que o regime de separação de bens expresso no art. 1.687 do novo Código Civil prevê a absoluta distinção de patrimônio dos cônjuges, não se comunicando os frutos e aquisições e permanecendo cada qual na propriedade, posse e livre administração de seus bens, diferentemente do Código Civil de 1916, que exigia inclusive a outorga conjugal para a alienação de imóveis (art.276).

Ora, se o novo Código Civil, ao disciplinar o regime da separação de bens decidiu pelo total isolamento do patrimônio dos cônjuges, dispensando a outorga uxória e afastando, inclusive, a comunhão de aqüestos, como é possível sustentar o entendimento de que os cônjuges casados sob este regime de bens sejam herdeiros necessários?

Pode o mais, mas não pode o menos, ou seja, a lei faculta ao casal decidir o regime de bens de incomunicabilidade total mas não reconhece os reflexos desta decisão no campo sucessório?

É de se concluir, portanto, que é impossível interpretar isoladamente o art. 1.829, I, do Código Civil para admitir o cônjuge casado pelo regime da separação de bens como herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, posto que tal interpretação está em dissonância com as inovações introduzidas pelo novo Código Civil com relação a tal regime, no sentido de dar maior independência aos cônjuges na disposição e administração de seus bens.

O STJ, instado a interpretar os dispositivos supra relacionados, deu-lhes idêntica interpretação àquela acima sustentada, valendo a transcrição da ementa do acórdão da lavra da Ministra Nancy Andrighi, em julgamento de hipótese que guarda total coincidência com o caso em exame:

Ementa

Direito civil. Família e Sucessões. Recurso especial. Inventário e partilha. Cônjuge sobrevivente casado pelo regime de separação convencional de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Interpretação do art. 1.829, I, do CC/02. Direito de concorrência hereditária com descendentes do falecido. Não ocorrência.
- Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.
- Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança,por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.
- Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados unicamente entre os descendentes.
- O regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separaçãolegal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.
- Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário.
- Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, deve prevalecer a interpretação que conjuga e torna complementares os citados dispositivos.
- No processo analisado, a situação fática vivenciada pelo casal – declarada desde já a insuscetibilidade de seu reexame nesta via recursal – é a seguinte: (i) não houve longa convivência, mas um casamento que durou meses, mais especificamente, 10 meses; (ii) quando desse segundo casamento, o autor da herança já havia formado todo seu patrimônio e padecia de doença incapacitante; (iii) os nubentes escolheram voluntariamente casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos.
- A ampla liberdade advinda da possibilidade de pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, prevista pelo Direito Patrimonial de Família, não pode ser toldada pela imposição fleumática do Direito das Sucessões, porque o fenômeno sucessório “traduz a continuação da personalidade do morto pela projeção jurídica dos arranjos patrimoniais feitos em vida”.
- Trata-se, pois, de um ato de liberdade conjuntamente exercido, ao qual o fenômeno sucessório não pode estabelecer limitações..
- Se o casal firmou pacto no sentido de não ter patrimônio comum e, se não requereu a alteração do regime estipulado, não houve doação de um cônjuge ao outro durante o casamento, tampouco foi deixado testamento ou legado para o cônjuge sobrevivente, quando seria livre e lícita qualquer dessas providências, não deve o intérprete da lei alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao regime de bens pactuado.
- Haveria, induvidosamente, em tais situações, a alteração do regime matrimonial de bens post mortem, ou seja, com o fim do casamento pela morte de um dos cônjuges, seria alterado o regime de separação convencional de bens pactuado em vida, permitindo ao cônjuge sobrevivente o recebimento de bens de exclusiva propriedade do autor da herança, patrimônio ao qual recusou, quando do pacto antenupcial, por vontade própria.
- Por fim, cumpre invocar a boa fé objetiva, como exigência de lealdade e honestidade na conduta das partes, no sentido de que o cônjuge sobrevivente, após manifestar de forma livre e lícita a sua vontade, não pode dela se esquivar e, por conseguinte, arvorar-se em direito do qual solenemente declinou, ao estipular, no processo de habilitação para o casamento, conjuntamente com o autor da herança, o regime de separação convencional de bens, em pacto antenupcial por escritura pública.
- O princípio da exclusividade, que rege a vida do casal e veda a interferência de terceiros ou do próprio Estado nas opções feitas licitamente quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar, robustece a única interpretação viável do art. 1.829, inc. I, do CC/02, em consonância com o art. 1.687 do mesmo código, que assegura os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido, bem como preserva a autonomia privada guindada pela eticidade. Recurso especial provido. Pedido cautelar incidental julgado prejudicado. (grifos nossos)

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Vasco Della Giustina e Paulo Furtado votaram com a Sra. Ministra Relatora.
REsp 992749 / MS - Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI - 3ª Turma do STJ - MA
Data do Julgamento 01/12/2009, Data da Publicação/Fonte DJe 05/02/2010
RSTJ vol. 217 p. 820

É forçoso concluir, portanto, da análise sistemática do artigo 1839, I com os demais artigos pertinentes, notadamente os artigos 1639 e 1687 do Código Civil, decorre o entendimento de que o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da separação total de bens, convencional ou legal, não concorre à herança com o descendente.

Em decorrência, não remanesce direito a Maria de perceber 1/3 dos bens deixados por João, devendo a herança ser partilhada entre os dois filhos deste, seus únicos herdeiros.